terça-feira, 23 de outubro de 2007

We'll never know

"Havia pijamas assustados e rostos rasgados. Foi o cabelo do menino que ela viu primeiro.
Rudy?
Em seguida, fez mais do que apenas mover os lábios para enunciar a palavra.
— Rudy?
Ele estava deitado com seus cabelos amarelos e os olhos fechados, e a menina que roubava livros correu em sua direção e desabou. Deixou cair o livro preto.
— Rudy, acorde — soluçou.
Agarrou-o pela camisa e lhe deu a mais leve sacudidela incrédula.
— Acorde, Rudy — e já então, enquanto o céu continuava a esquentava a despejar uma chuva de cinzas, Liesel agarrava o peito da camisa de Rudy Steiner.
— Rudy, por favor — e as lágrimas se engalfinhavam com seu rosto.
— Rudy, por favor, acorde, que diabo, acorde, eu amo você. Ande, Rudy, vamos, Jesse Owens não sabe que eu amo você? Acorde, acorde, acorde...Mas nada se importou. Os destroços apenas subiram, mais altos. Montanhas de concreto com tampas de vermelho. E uma linda menina, pisoteada pelas lágrimas, sacudindo os mortos.
— Vamos, Jesse Owens...
Mas o menino não acordou.
Incrédula, Liesel afundou a cabeça no peito de Rudy. Segurou seu corpo amolecido, tentando impedir que pendesse para trás, até que precisou devolvê-lo ao chão massacrado. E o fez com delicadeza.
Devagar.
Devagar.
— Meu Deus, Rudy...
Inclinou-se, olhou para seu rosto sem vida, e então beijou a boca de seu melhor amigo, Rudy Steiner, com suavidade e verdade. Ele tinha um gosto poeirento e adocicado. Um gosto de arrependimento à sombra do arvoredo e na penumbra da coleção de ternos do anarquista. Liesel beijou-o demoradamente, suavemente, e, quando se afastou, tocou-lhe a boca com os dedos. Suas mãos estavam trêmulas, seus lábios eram carnudos, e ela se inclinou mais uma vez, agora perdendo o controle e fazendo um erro de cálculo. Os dentes dos dois se chocaram no mundo demolido da Rua Himmel.
Liesel não disse adeus. Foi incapaz de fazê-lo e, após mais alguns minutos ao lado do amigo, conseguiu levantar-se do chão. Fico impressionada com o que os seres humanos são capazes de fazer, mesmo quando há torrentes a lhes descer pelos rostos e eles avançam cambaleando, tossindo e procurando, e encontrando."
A Menina Que Roubava Livros - Marcus Zusak


Incrível como palavras podem nos tocar tão fundo, ao ponto de nos fazer verter litros de lágrimas.
Ou será que a capacidade de determinadas pessoas em transformar em palavras sentimentos tão íntimos e profundos, que até mesmo o mais sensível dos seres é incapaz de sentir?
Quando imagino Liesel, vejo uma menina fraca, magra, branca, de pernas finas e suja. Com medo e, sempre, fome.
Quando penso em Rudy, imagino a mesma coisa. Só que, acima dessas características, ele sabia. Ele sabia.
E ela? Só soube tarde demais.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

E quando pisca, sai faísca

"A vida, Senhor Visconde, é um pisca-pisca.
A gente nasce, isto é, começa a piscar.
Quem pára de piscar, chegou ao fim, morreu.
Piscar é abrir e fechar os olhos - viver é isso.
É um dorme-e-acorda, dorme-e-acorda, até que dorme e não acorda mais.
A vida das gentes neste mundo, senhor sabugo, é isso.
Um rosário de piscadas. Cada pisco é um dia.
pisca e mama;
pisca e anda;
pisca e brinca;
pisca e estuda;
pisca e ama;
pisca e cria filhos;
pisca e geme os reumatismos;
por fim, pisca pela última vez e morre.
- E depois que morre - perguntou o Visconde.
- Depois que morre, vira hipótese. É ou não é?"



Não sei se quem está lendo isso, já teve oportunidade de ler ou ouvir esse texto, de Monteiro Lobato. A primeira vez que eu o ouvi foi no Museu da Língua Portuguesa, e fiquei imensamente emocionada.
A vida é isso.
Num piscar, tudo muda. E o que acontece quando parámos de piscar? Quem pode saber?
Mais sábia era a famosa boneca de pano, que compreendeu isso melhor de que muita gente.

Se a vida é um pisca-pisca eu não sei, só sei que tudo pode ser diferente num abrir e fechar de olhos, seja a vida, seja o mundo. E quem pode ser saber se isso é bom?